Epidemia na Índia gera alerta para o que pode ser próxima pandemia


A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou, no último mês, um ranking de fungos que podem ser bastante ameaçadores para a saúde humana. A lista, que contém 19 fungos diferentes, tem como objetivo trazer atenção para uma classe de patógenos que, geralmente, não recebe muita importância, mesmo tendo presença crescente, sendo resistentes a tratamentos e com uma alta taxa de mortalidade. Esses fungos apresentados pela OMS são responsáveis por 1,3 milhão de mortes anualmente, e, na maior parte dos casos, ataca pessoas já adoecidas por outras causas e que estão mais vulneráveis a infecções por conta de fragilidades no sistema imunológico.

Um desses fungos, em especial, está causando uma epidemia na região do subcontinente indiano desde maio de 2021 – a mucormicose, conhecida popularmente como “doença do fungo negro”, que é uma infecção fúngica oportunista, grave, invasiva e rara, causada por fungos da ordem mucorales, conforme explica a doutora em Biologia Celular e Molecular e professora do curso de Biomedicina da Universidade Positivo (UP), Marianna Boia. “Clinicamente, a mucormicose pode ser classificada de acordo com o local anatômico da infecção em cutânea, disseminada, rino-órbito-cerebral (ROC) e pulmonar, sendo as duas últimas as mais frequentes”, detalha. Existem inúmeros relatos de médicos indianos que precisaram realizar cirurgias de remoção de áreas do rosto dos pacientes acometidos pela doença, sendo o único recurso para salvar suas vidas.

Ainda segundo a OMS, a pandemia de covid-19 levou a um aumento nas infecções fúngicas em pacientes que foram internados, e as mudanças climáticas dos últimos anos ajudaram a aumentar a área geográfica de presença de alguns fungos. Além disso, Marianna aponta que a doença pode ser adquirida pela inalação de esporos fúngicos presentes no ambiente, por via cutânea ou mucosa, quando há perda da integridade da barreira da pele ou mucosa, e pela ingestão de alimentos contaminados. “Esses microrganismos podem ser encontrados no meio ambiente, em resíduos orgânicos em decomposição, frutas, alimentos ricos em amido, vegetais e fezes animais, mas não ocorre transmissão entre seres humanos, nem entre animais e seres humanos”, esclarece a professora, ressaltando que a epidemia na Índia está associada aos altos níveis de diabetes na população, um dos maiores do mundo; à automedicação, que prejudica o tratamento de qualquer doença; e à precariedade no saneamento básico do país. No Brasil, foram notificados 206 casos nos últimos 5 anos, sendo 99 deles em 2021.

Por ser uma infecção oportunista, os fatores de risco da mucormicose estão associados à debilidade do sistema imunológico do paciente. Pacientes imunossuprimidos, por exemplo, apresentam frequentemente febre e sintomas respiratórios. Já os pacientes diabéticos, regularmente acometidos com a forma ROC, apresentam sintomas semelhantes a uma sinusite, que pode evoluir para uma obstrução nasal, sangramento, edema de face, dor ocular, ptose palpebral, perda visual temporária, hematomas e necrose. “A ocorrência mais comum é em pacientes com diabetes mellitus descompensada, isso porque a falta da insulina é uma condição que favorece o desenvolvimento do fungo. Porém, condições que enfraquecem o sistema imunológico como quimioterapia, imunoterapia, transplante de órgãos, procedimentos cirúrgicos, infecções persistentes e o uso prolongado de antibióticos também facilitam a instauração do fungo”, explica a especialista, apontando que, atualmente, essa infecção tem sido muito associada à covid-19 por conta dos quadros de hipóxia, hiperglicemia, acidose metabólica, níveis elevados de ferro e redução da atividade leucocitária, devido à imunossupressão causada pelo SARS-CoV-2, além de fatores como comorbidades e hospitalização prolongada.

Apesar da alta taxa de mortalidade, que varia de 40% a 80% dos contaminados, Marianna aponta que a letalidade da mucormicose depende das condições da doença de base do paciente. No caso da covid-19, a tempestade de citocinas gerada pela infecção, aliada ao uso de corticoides no tratamento, aumenta o risco de desenvolvimento da doença e de sua forma mais grave. “O importante é focar no problema de base do paciente a fim de evitar que complicações associadas à mucormicose possam acometer os doentes”, recomenda. A mucormicose já é conhecida e diagnosticada há muitos anos. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, houve um aumento expressivo da doença em 2021, associado às infecções por covid-19. Porém, com a vacinação e a redução de casos graves, o número de pacientes notificados reduziu em 86% em 2022. “É difícil determinar, nesse ponto, se isso pode ou não se tornar uma pandemia. É necessário avaliar diversos fatores para determinar se uma doença vai ou não se estabelecer na sociedade: facilidade de transmissão, patogenicidade e taxa de mutação do microrganismo”, explica a especialista.

O diagnóstico da mucormicose é realizado por laboratórios especializados, por meio do exame micológico direto e da cultura de fungos. A professora indica que pacientes com lesões no céu da boca, seios da face ou pele devem realizar a coleta de biópsias. “Ainda é possível fazer a identificação do fungo por espectrometria de massas e por sequenciamento de DNA”, aponta Marianna, que, como forma de prevenção, além do controle de comorbidades, aconselha o uso de equipamentos de proteção individual - máscara, luvas e sapatos - quando houver exposição à poeira proveniente de escavação do solo, manipulação de vegetais e em atividades como terraplanagem e jardinagem. “A principal medida de prevenção e controle da mucormicose ainda é a correção de alterações relacionadas à doença de base. Por exemplo, a correção dos índices glicêmicos em diabéticos, a estimulação do sistema imunológico, e até mesmo a adoção de hábitos saudáveis, como alimentação balanceada, exercícios físicos e sono regular”, detalha.

Diante da gravidade da doença, quando houver suspeita clínica, o tratamento deve ser iniciado imediatamente, seguindo os três pilares fundamentais para o controle da mucormicose. “É recomendada cirurgia extensa, com margem de segurança, nas áreas afetadas; controle da doença de base; e tratamento antifúngico imediato, com altas doses de formulação específica”, finaliza a especialista.

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